A Maria Lídia Magliani

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SP 19.03.90

Magli Magoo, menina loba,
devidamente empacotado, sem entender grande coisa, mas no meu
duríssimo caso acho que não faz mesmo diferença, eis que sento para te escrever às
oito da matina. Toca Lulu Santos no rádio. Adoro rádio de manhã cedo, deixo
tocar o que pinta, a culpa não é minha. Chove. Um maço de cigarros e nenhum
tostão no bolso, os bancos só abrem ao meio-dia. Já vimos um bocado de,
digamos, História do Brasil nestas nossas vidas de retinas, digamos, ofuscadas, não?
Bueno, não te respondi logo porque enlouqueci. Comecei a escrever
loucamente um romance no qual (no-qual é horrível) vinha trabalhando desde
84/85. Acho que sai, estou quase na metade. Esta última semana não consegui
trabalhar, além de Zélia e Femandinho enlouquecendo a todos nós, me deu outra
vez a tal de otite. Inflamação no ouvido que ameaça se tomar crônica. Dores,
insônias, antibióticos, febre, visões, gotas. Minha médica fala duas coisas
assustadoras: 1º) a idade-teresinha; 2°) a poluição paulistana. Que se há de fazer?
Envelhecer sem deixar de procurar nossa porção Samuel Beckett, talvez.
Estou dispersivo e pedante. O que quero te contar, criatura, é que viraste
personagem. Pois é. Te escrevo então para pedir uma espécie de permissão.
Seguinte: no livro todos têm nome, menos a personagem principal, o
narrador. Ele é um jornalista chegando nos 40 anos (hmmm...), publicou um livro
de poemas chamado Miragens, a vida toda viajou de um canto para outro, sem se
fixar em cidade nenhuma, em amor nenhum, homem ou mulher. Ele nem sabe
direito da própria sexualidade, na verdade o romance inteiro é o pobre buscando a
própria ânima. Bem, no momento em que se passa a história — uma semana de
fevereiro — ele está morando num apartamento na rua Augusta, próximo à Praça
Roosevelt. E um apartamento deixado por uma amiga — e é aí que você entra —
que largou São Paulo para morar no interior de Minas. As vezes ele chega em casa e
há uma carta dela. Só que, na hora de batizá-la (aliás, ela não estava planejada,
nasceu de enxerida), não consegui evitar: me veio Lídia. Já pensei muito — Laura,
Clara, Ana — mas ela se recusa a mudar de nome.
Então é isso, permites? Se não, não tem problema, troca-se. Mas se sim (sesim
também é medonho), ótimo. Na verdade isso é um detalhe muito passageiro
no livro todo — aliás, todas as personagens (muitas) são passageiras, e todas uma
parte dele mesmo projetada externamente. Um desconhecimento do próprio ego
cercado de alteregos por todos os lados, mais ou menos isso.
Ando aflito. Um pouco pelo livro, que sempre deixa a gente naquele estado
meio tobogã, entre a euforia e a depressão. Durmo demais ou não durmo, fumo
demais sempre, tomo café demais idem, acho de repente o-melhor-romande-detoda-
a-história-da-literatura-brasileira, no segundo seguinte quero jogá-lo no fogo e
me jogar pela janela junto, etc. & etc. você sabe, a criaçã.
Também tenho precisado me impor uma disciplina rígida, militar, para poder
escrevê-lo. Mil divisões entre todos os biscates culturais que faço para sobreviver e
as horas da criação. Tenho conseguido, hei de.
Tua carta me pareceu um tanto amarga. Há uma frase tipo “meu amor
parece ter ofendido profundamente às pessoas que amei”, algo assim, com a qual
absolutamente não concordo. Não se trata de ofensa, não se trata de aceitação, nem
de nada que não seja apenas: as coisas são assim. Os magnetismos das pessoas
cruzam- se e descruzam-se, acho, meio que aleatoriamente, por algum tempo, por
nenhum tempos por muito tempo. E mais complexo que isso, mas anyway: não
deve doer. E não deve porque no fundo não tem importância, como todo o resto.
E puro maya, ilusão.
No meio da aflição objetiva de sobreviver nesta cidade, neste pais neste
planeta, neste tempo — ando também bastante sereno. Acho. Alguma coisa em mim — e pode-se chamar isso de “amadurecimento” ou “encaretamento” ou até
mesmo “desilusão” ou “emburrecimento” — simplesmente andou, entendeu?
Desisti de achar que o príncipe vai achar o sapatinho (ou sapatão) que perdi nas
escadarias. Não sinto mais impulsos amorosos. Posso sentir impulsos afetivos, ou
eróticos — mas amorosos, sinceramente, há muito tempo. É estranho, e não me
parece falso, mas ao contrário: normal. Era assim que deveria ter sido desde
sempre. E não se trata de evitar a dor, é que esse tipo de dor é inútil, é burra, é
apego à matéria.
Sei lá. E não sei se me explico bem.
Hoje à noite tem show e lançamento do primeiro disco de Annie Peréc,
que sempre pergunta por você. Eu teria obrigação de ir, mas não vou mais a lugar
nenhum onde possa encontrar “todo mundo”. Tenho passado escrevendo,
cozinhando, ouvindo música (a Laurie Anderson nova, Strange angels, é tão linda) e
falando — cada vez mais — sozinho. Acertei uma alta com meu terapêutico, mas
não consigo evitar de pensar que engambelei o pobre com a minha sanidadeteresinha.
Um beijo pra Marijô.
Outro, grande, procê,
Caio F.
Please, send me a letter.


SP 12.07.90

Magli,
tenho pensado tanto em você. Não consegui escrever antes, estava
mergulhado no livro tipo tempo integral. Bem, terminei. Ufa. Foi um trabalho de
Hércules. Chama-se Onde andará Dulce Veíga?, é aquele romance no qual eu vinha
remanchando desde 85. Imagina que escrevi um policial, histérico, naturalmente, mas
cheio de tramas & ação. Descobri o fascínio do enredo, das personagens — ficção
mesmo. Escrevi cerca de duas mil laudas, para chegar numas 200. Fiquei feliz — e
com um terrível problema de coluna, resultado de passar oito a doze horas na
máquina. Preciso de um computador!
Mas pensava em você. Um dia cheguei a sonhar. Era bonito. Você estava
naquela casinha de Sarandi, só que ela ficava no meio de um terreno enorme. Você
morava sozinha lá, eu ia te visitar. Você estava no pátio, cercada por esculturas e
objetos, quase todos inacabados. Eu ficava fascinado por um — que era uma
espécie de barco côncavo (todos os barcos são côncavos, acho) com a escultura de
um corpo na proa (proa? tipo assim as carrancas do São Francisco). Era muito
colorido, muito belo.
Lembrei de você também vendo, num festival de filmes mexicanos, Frida
Kahlo: naturaleza viva. Absolutamente enfeitiçante. Eu não sabia quase nada dela,
tinha uma imagem assim mistura de Lou Andreas-Salomé com Olga Benário. Bem,
era um pouco disso e nada disso. O filme é ficção, mas os quadros dela são os
próprios. Loucos, dolorosíssimos, meio surrealistas, meio impressionistas, meio
primitivos. Juntei tostões e saí à cata da biografia dela, encontrei ontem. Lembra
demais você.
E lembrei ainda mais lendo esses recortes — que vão junto — sobre Francis
Bacon. Como anda teu trabalho? Baconiano? Morro de curiosidade. Suponho que
os ares mineiros tenham mudado algumas coisas. Me conta.
Magli, ando tomando umas decisões. Viajo em novembro para a Europa,
não sei se volto. Ganhei ano passado aquela passagem da Air France, do Moliêre,
até Paris. Exatamente em novembro estarão sendo lançadas na França e na
Inglaterra as traduções de Os dragões, os editores acham importante que eu esteja
lá, para dar entrevistas, fazer caras e falar da dificuldade-de-ser-artista-num-país-doterceiro-
mundo (europeu adora esse miserê cultural). Então vou, preciso vender os
livros, não quero fazer mais nada na vida a não ser escrever. Fico uns dois meses
mas — quem sabe? — se houver alguma possibilidade de ficar mais, vou ficando,
acho.
Ando exausto de Realidade Brasileira. Tudo muito penoso, ir ao banco, ao
supermercado, pagar aluguel. Tudo no meio da barbárie, da violência, da miséria.
Procuro sair de casa o mínimo possível, mas esse mínimo já está se tomando um
martírio. Muita feiúra, Magli, muita violência e miséria. Então, sem laços, vamos
voltar pra estrada: “Caminante, no hay caminos, pero el camino se hace al andar”.
Rádio ligado, chuva fina, Dusek canta— tão engraçado — Barrados no baile,
lembra? “Lá dentro rolando Bob Marley/ Cá fora por favor documentos.” Este
país está se tornando um enorme barrados-no-baile.
Enfim, agora, Duke Veiga encaminhada na vida (sai em setembro, na altura
dos meus — quem diria? — 42 anos), estou na batalha de grana para viajar. Volto a
dirigir um laboratório de criação literária — não morro de amores, Deus, Magli, da
última vez, numa turma de 20, sobrou apenas UM, e assim mesmo com talento,
digamos, apenas razoável. Na-minha-vida-de-retinas-fatigadas tenho descoberto
essa obviedade: talento é raríssimo, meu bem.
Ando morto de saudade de Porto Alegre, acho que vou agora no fim do
mas, ficar uns 10 dias. Vou de ônibus, bem pobrinho. Basta sentar nos degraus de
casa, tomar um sol com Zaél e Nair, chimarrão com bergamota (mistura explosiva),
uma noitada no Lola ou/e Ocidente, uma voltinha na Redenção, um pôr-do-sol no Guaíba — e já me sinto tri-reenergizado. Amo demais o Sul. Naturalmente que é
um Sul utópico, que existe mais na memória afetiva, filtrada, do que na real. Mas
sempre me pergunto por que, raios, a gente tem que partir. Voltar, depois, quase
impossível.
Fui ao Rio para o enterro de Cazuza. Imagina: eu NUNCA na minha vida
tinha ido a um enterro. Eu o adorava — uma vez, fiquei tão exibido, ele me
dedicou uma música num show do Aeroanta, era Só as mães são felizes, claro. A gente
se agarrava loucamente e rolava de rir toda vez que se encontrava. Eu precisava
encerrar essa história. Acabou sendo bonito, toda aquela gentalha em prantos,
provavelmente porque o identificava como a bichinha aidética do barraco da frente.
Bonito e terrível, no sentido brasileiro do termo. Ai, Brasil, Brasil, mostra a tua
cara.
Meu livro gira todo em tomo do BRASIL. Um Brasil imundo, corrupto,
violento, mas também mágico, sensual. Sinto cada vez mais uma paixão
desesperada — e rejeitada — por esta terra. Aquele amor não-retribuído que aos
poucos vai virando veneno, desejo de vingança, rancor e mágoa.
Mudei tanto, será a idade? Serão os tempos? Perdi aquela necessidade juvenil
de me apaixonar toda semana. Ressabiei. Não fechei, acho, mas. Ah, sei lá.
O papel vai acabando, tenho que ir à cidade pagar aluguel, depois vou fazer uma
entrevista com Hilda Hilst. Ela anda com uns problemas de coração, 60 anos de
cigarros & desregramentos. Está doida, linda, lúcida e insuportável como sempre.
Beije Marijô por mim.
Send me some news, beijos
Caio F.

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