A Luciano Alabarse

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São Paulo, 20 de setembro de 1984
(a um passo da primavera)

Luciano,
estou te devendo uma carta — mesmo assim esperei uma resposta, digo,
notícia sua nestes últimos dias. Tenho andado sem tempo, desde que comecei a
trabalhar aqui na Around. Os primeiros dias foram difíceis, o fim de agosto me
pegou dentro de um ciclo depressivo — cheguei a te escrever uma carta, mas não
mandei. Pensei, nossa, coitado, receber uma carta assim num final de agosto, em
Porto Alegre, melhor poupá-lo.
Agora passou. Me acostumei mais. Estava muito desacostumado de
trabalhar, não suportava ver principalmente as relações entre as pessoas. É tudo tão
competitivo. E principalmente aqueles gritinhos de mulheres — é uma revista
chiquíssima, o dia inteiro entram e saem manequins, locomotivas sociais, pessoas in
(nada mais out que alguém que se comporta como in). Desgosto total. Fui dando
uns cortes no meu senso crítico: agora atingiu o limite do tolerável. Ou do
convivível.
Mesmo assim, dúvidas. Anteontem fui a uma sessão especial de um
espetáculo sobre Artaud (ameaçado de não estrear: censura federal, pois é) e saí
com a cabeça muito enlouquecida. Você fica pesando as médias que faz todos os
dias, para poder sobreviver. O saldo é meio amargo. O radicalismo de Artaud é
perturbador, porque não há média possível com eles. Problema é que, no caso dele,
esse radicalismo beira os limites da self-destruction. Aí dangeriza. E eu não sei.
Lya me contou por carta do final ótimo de Reunião. Espero que você tenha se
reconciliado com o pessoal e que, enfim, o saldo tenha sido positivo e alegrinho
para você.
Estou escrevendo na redação. Esta máquina é pesadíssima. Um dia cinza. Há
quase um mês estamos dentro de dias cinza, de ar muito sujo. Meu nariz sangra e
os olhos ficam vermelhos. Os índices de poluição andam altíssimos. Dizem que os
índices reais não são divulgados, para não causar pânico à população. Tenho
andado muito de ônibus. Sento na janela e fico olhando o povo: é tristíssimo.
Nunca vi antes caras tão amargas. E pobres, muito pobres. Dói de ver. E não se
pode fazer nada. Tenho feito fantasias inconseqüentes de ir morar no interior. Um
dia, quem sabe. São Paulo estrangula aos poucos, e te rouba energia, e não te repõe.
A gente se gratifica como pode. Hoje quero fugir mais cedo daqui para
assistir a Merry Chrystmnas, Mr. Lawrence — aquele filme japa com o David Bowie,
do Nagisa Oshima, do Império dos sentidos. Apesar de que japas e cultura japa e
estética japa não me fazem a cabeça. Fui ver A balada de Narayama e detestei: tosco
demais. Bruto demais.
Dia de meu aniversário foi esquisito. Bem, sempre é esquisito. Mas parecia
que estava com febre. E uma aflição, menino. O tempo todo me perguntando
coisas do tipo o que fiz? será que estou agindo do jeito certo? e há um “jeito
certo”? se houver, qual é? Por ai. Daí à noite apareceram algumas pessoas, Maria
Adelaide, Zé Márcio, Reinaldinho. Preparei uns bloody-marys, todo mundo foi
embora, ouvi uma Billie Holiday e fui dormir.
Haja.
Quase meio-dia. Ontem mandei para o Rio as provas revisadas de O ovo
apunhalado — acho que deve ficar bonito. Mas é isto. Me dê notícias, me conte
coisas daí. Quem anda por aqui é o Nei Lisboa, que eu não conhecia. Outro dia
conversamos um pouquinho e achei ele ótimo.
Cuide-se bem. Muito carinho e um beijo do
Caio F.

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