A Luciano Alabarse

0

Sampa, 1º de agosto de 1984.

Luciano, querido,
estou ouvindo
“quero falar de uma coisa
adivinhe onde ela anda
deve estar dentro do peito
ou caminha pelo ar”. São quase seis horas da tarde —
“pode estar aqui do lado
bem mais perto que pensamos”
— fico arrepiado quando escuto. Saí há pouco no pátio, molhei as plantas. Depois
fui tomar um café debruçado no portão da rua. Tem um pôr-do-sol todo rosa, com
uma lua crescente (em Libra). Aí de repente me senti tão bem — é um privilégio
morar em SP e poder fazer essas pequenas coisas. Podia estar enfiado numa
quitinete na São João.
Tua carta me fez muito bem. E muito mal. Compreendo tudo que você diz.
São coisas que me digo, também. Mas há uma diferença entre você saber
intelectualmente da inutilidade das procuras, da insaciabilidade — vixe, que palavra!
— do corpo e conseguir passar isso para o seu comportamento — tomar ato o que
é pensamento abstrato. Os caminhos são individuais/intransferíveis.
Meu problema maior é minha própria moral — ou a que adquiri através da
educação, da sociedade, não importa. Meu problema é que tenho dentro de mim,
muito claros, os conceitos de “moral” e “imoral”. E que cada “imoralidade” que
cometo me deixa um saldo enorme de culpa, de amargura, de sofrimento. Vide
Marilena Chauí, Repressão sexual. Pois é. Não encontrei Deus ainda, como você. Ele não veio até mim — e digo isso lembrando de um provérbio zen: “Quando o
discípulo está preparado, o Mestre vem a ele”. Ainda não veio. Ainda não estou
preparado.
Mas estou mais tranqüilo. E percebendo coisas: voltei para Sampa muito
alegrinho, muito na-boa, muito tudo-vai-rolar. A memória da gente é safada:
elimina o amargo, a peneira só deixa passar o doce. Então eu tinha esquecido que
esta cidade te cobra preços altos. Ela é uma mulher (ou um homem) belíssima(o)
que se oferece, tentador(a), como se amasse, te envolve, te seduz — e na hora em
que você não suporta mais de tesão e faria qualquer negócio, ela(e) te diz o preço.
Que é muito alto.
A semana passada mergulhei na revisão de O ovo apunhalado — que está me
fazendo bem, estou quase no fim. Emoções loucas ao mergulhar em textos escritos
há mais de 10 anos: reintegra. Reescrevi algumas coisas. Critiquei muitas: há uma
atitude de fazer-literatura que não gosto. Mas me fez bem, bem demais.
E decidi me poupar mais. Tem sido difícil. E não sei se há recompensa.
Talvez, quem sabe, me sentir melhor comigo mesmo. Um I-Ching me aconselha a
“limitação”: um lago não deve querer transbordar de seus limites.
Andei com problemas graves de grana — ontem Nello precisou me
emprestar para o aluguel. Tudo bem, porque granas da TV e da editora (naquela
linha: a sair) devem melhorar as coisas um pouco. Mas a longo prazo tenho medo.
A crise finalmente chegou, e é bem nítida. As pessoas em volta, os amigos, todos
na mesma situação. Num país doente como o nosso, de que forma preservar um
mínimo de saúde?
Sinto falta daí. Me digo que na verdade sinto falta do colo, do conforto, do
útero. E que devo ficar por aqui. Então tenho que ser forte, tenho que me exercitar
em autocontrole. Claro que me pergunto pra-quê? — e claro que não tenho
resposta. Mas vou atravessando os dias, a casa muito vazia (Grace só vem dia 8),
às vezes dói. Nos últimos dias, além de trabalhar, cozinho, faço pequenas coisas. E atravesso os dias, um pouco opaco, com breves iluminações — como há pouco, no
portão, olhando o céu.
Passa um avião.
Estou cheio de fé neste agosto. Meus trânsitos astrológicos estão ótimos.
Julho tinha muitos maus aspectos do Sol e o final de uma oposição Netuno-Urano:
desorganização mental e fisica.
Não lembro se te falei: um moço de Brasília quer que eu adapte o Pela noite
para teatro. Fiquei a princípio surpreso, depois muito entusiasmado. Estou cheio de
idéias. Ele se dispõe a chamar um diretor do Rio ou SP — falou em Domingos
Oliveira, ou Fauzi Arap, ou Flávio Rangel — para dirigir.
Fiquei preocupado com o acidente de La Anagnostopoulos — grave, ainda
mais que a saúde dela não é boa. Dá um beijo nela, faz um carinho nela.
Obrigado pelas tuas palavras. Obrigado pela tua presença. Te quero sempre
bem. Um beijo do
Caio F.


São Paulo, 24 de agosto de 1984
(não é aniversário do suicídio de Getúlio?)

Luciano, querido,
uns dias assoberbados — e eu sem tempo pra te escrever. Um dia azul lindo,
depois de chuva e frio. Azul, azul. Blue. Passei quatro dias no Rio — fui entregar os
originais do Ovo ao Pedro Paulo, fazer urna entrevista com Ney Matogrosso para o
Around (o show tá lindo) e, last but no least, ver Pedrinho.
Bueno.
Grace chega na janela. Passa urna borboleta preta e amarela. Já tinha passado
uma branca.
Segunda-feira começo a trabalhar fixo no Around. Aí acho que as coisas se
ajeitam de vez. Pelo menos no plano prático. Com Grace aqui, tudo melhorou
muito. As granas também começaram a rolar melhor. Vou retomar o Violla. Talvez
também a terapia.
De ontem para hoje, estou um pouco cansado e melancólico. Esses azuis do
céu — uns sopros de primavera — te deixam mais consciente da falta de saúde de
Sampa. Hoje acordei com vontade de estar, por exemplo, em Porto Seguro. E
então deitar na areia, embaixo de uma palmeira, e olhar o mar. O mar momo e
verde. Tenho tido fantasias assim, de felicidade e preguiça tropical. O que é sinal de
que Sampa está cansando. O que é natural.
Mas tudo bem. Botei o colchão no sol. Botei também — dia de Oxalá — as
azaléas brancas que Tuio me deu. A roseira tá carregadinha. Falei bastante com
Lya, por telefone, no Rio. Não deu pra encontrar. Ela me contou as histórias sobre
Reunião. Ai, atores. Bem faz Antunes que diz que ator é parafuso e trata todos com
rédea curta? Suponho que sim. Pelo menos o resultado, no espetáculo, é aquilo que
você vê. Fui ver Carmen, de Saura, e meu sangue espanhol ferveu. Quanta paixão.
Dá vontade de sair dançando flamenco. E dá urna outra coisa: vontade de viver a humanidade do corpo, com seus vendavais de ciúme e impulsos homicidas e
traições e sedes trágicas.
A propósito: depois de uma noite linda com Pedrinho, [...] a última imagem
foi a ponta do dedo indicador dele acariciando a ponta do meu dedo indicador
através das grades da janelinha do elevador. Cena de cinema. E a voz dizendo que
vinha a São Paulo daqui a uma, quem sabe duas ou três semanas. Porta do elevador
fecha enquanto sobem os créditos.
Pausa. Telefone. Falo com a Brasiliense e com a Capricho. Grace me traz dois
morangos e uma torrada.
Tua carta me parece triste. É mais uma vibração do que uma observação
intelectual. Assim — perdão — como se estivesses deixando tudo acontecer mais
no plano abstrato, porque o real-palpável não está te dando satisfações. Claro que
posso estar enganado.
Leio O perigo do dragão, de Bruna, que é lindo. Nos intervalos, rebato com
Allen Ginsberg. Muita poesia.
Têm me vindo frases na cabeça. Vou anotando. Ontem, urna, tão insistente,
assim: “Fiquei ali parado, procurando alguma coisa que não estava nem esteve ou
estaria jamais ali”.
Leve melancolia. A cara de James Dean num postal encostado á um potinho
de cerâmica, com algumas margaridas.
Cuide-se bem.
Um beijo e muito carinho do
Caio F


Luciano, já estava com a carta pronta ontem, quando aconteceu uma coisa e
não deu pra colocar no correio. Reinaldo Moraes Moraes60, aquele meu grande amigo, foi
visitar a mãe dele, por volta de meio-dia, e encontrou-a morta, caída no chão da
cozinha. O pai dele havia morrido há pouco mais de um ano. Reinaldo é filho
único, os parentes poucos e muitos velhos. Resultado: alguns amigos tiveram que
segurar junto. Quando vi, estava no meio da coisa. Tipo vestir a morta, agitar o
caixão. Essas coisas. Eu nunca tinha visto ninguém morto, exceto Elis, no caixão.
Fiquei muito impressionado, mas fui mais forte do que imaginava. O enterro era
hoje de manhã, mas não tive coragem de ir, depois de ter ficado no velório ontem,
até tarde. Tenho impressão que alguma coisa na minha cabeça muda. E muda forte.
Não sei bem o quê. E como se estivesse muito mais velho. Assim como se um
contato frontal com a morte fosse a única coisa que faltava para ficar
definitivamente adulto. Pois é. Era terrivelmente real. E feio. E vazio — alguma
coisa já não estava mais lá. A alma? Pode ser.
Cheguei em casa muito mais tarde e encontrei aquele fascículo do IEL
sobre a Lya. Fiquei lendo, me acalmou. Está lindo. Acho que entendi mais o
trabalho dela. Acho que eu entendi mais uma porção de coisas. Será?
Mas é isto. Espero uma notícia sua. Beijo do
Caio F.

Ler mais »

0 comentários: