A Luiz Arthur Nunes

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Sampa, 20 de julho de 1984.

Luizar, querido,
tua carta me deixou meio confuso — você não recebeu uma que mandei há
mais ou menos um mês, CHEIA de notícias? Pelo visto, não. Tô aqui, de volta, faz
uns três meses. Sampa é karma gostoso, vezenquando heavy karma (não é um bom
nome para um grupo after-punk, com a influência hare-krisbna?). Mas adorodeio e
vai-se levando. Tô numa casa de quatro quartos, sozinho, e portanto inteiramente
às ordens quando você vier, por curto ou longo tempo. Trabalho, trabalho &
trabalho: mal dá para o aluguel, o telefone, umas comidinhas — pouco mais.
Roupas? Nem pensar. É a tal crise. O Brasil semimorto, confusão generalizada e
um travesti, Roberta Close, eleito como máximo símbolo sexual do país. Não é
funny? C’est pas un pays serieux, não é?
[...]Sinto sua falta e gostaria imensamente de voltar a trabalhar com você,
podemos agitar iso na sua volta — tenho sempre na cabeça o Carmilla (ou
Millarca, ou Mircalla). Ôtra cosa: Suzana, la exuberante Saldaña, me pede que eu recurta
o Sarau para que seja montada no Rio (contatou uns diretores, entre eles
Domingos Oliveira e Wolf Maya). Eu ainda não tive tempo de mexer no texto
(estou mergulhado numa tradução de — paixão — John Fante, Dreamsfrom Bunker
Hill; na revisão de O ovo apunhalado — sairá uma nova, chiquíssima, aguarde; num
roteiro para La Duarte — tudo com prazo) — mas penso em manter o melodrama,
mexer na primeira cena, manter os bonecos chineses, enfim, ainda não sei ao certo.
Como é um trabalho que fizemos, eu e você, juntos, e para que não aconteçam
rolos cadianos posteriores, acho que seria necessário, antes de mais nada, uma
autorização sua. Pense nisso e veja se você tá a fim — o crédito de autores seria
nosso, claro. Luizar, andei tão china, trepei como nunca na vida, de ficar ardido.
Não sei ao certo o que aconteceu, me encostaram umas frangas fortes. Agora tô
mais calmo. Ando lôco de vontade de escrever minhas próprias côsas, e não tenho
tempo — é batalha demais. Tão rolando côsas legais, e eu suponho que breve até
me sobrem umas granas quem sabe para passar um mês em NY no final do ano.
Preciso muito. Tá fazendo 10 anos que voltei, é Brasil demais na cabeça de
qualquer um. Às vezes me sufoco. Tive que parar com a dança, não tenho $$$.
Ninguém tem $$$. Você vai fazendo exercícios franciscanos exaustivos, reduzindo
tudo ao mínimo essencial, e o resultado, claro, numa sociedade ca-pi-ta-lis-ta, é
pura falta de prazer. Como anda a história da AIDS por aí? Aqui acalmou, mas
correm uns horrores vezenquando, há duas semanas foi um amigo-de-um-amigo,
quer dizer, foi-se. Vezenquando faço fantasias paranóica-depressivas, andei
promíscuo demais. Ah que ânsia de pureza, e meeeeeeeeedo da marca de Caim.
Ontem fui ver o Ensaio de orquestra, de Fellini, e voltei encantado, o filme podia ter uma epígrafe de Caetano: “Como é bom poder tocar um instrumento”. Não é?
Venha, venha & venha. Tento te introduzir nos meios televisivos, mas por
enquanto o que vi é abobrinha pura — as histórias de John Fante escrevendo
roteiros em Hollywood perdem. Bobajol. Vale talvez pela grana. Mas é uma côsa
procê usar e cair fora. Hoje à noite vou ver show de Nara Leão cantando só bossanova,
depois tenho um jantar com uma produtora da TV Cultura, Paula Dip, [...]
um programa semanal sobre literatura, ela precisando de um assessor. Mas tudo
neste país rola demais nas coxas, não há penetraçao, entende? Como diz John
Fante: “Please God, please Knut Hamsum, don’t desert me now”. Estou apaixonado por
ele. Dos americanos, é a coisa mais apaixonante que li desde Salinger (imbatível), Procure Ask the dust, e preste atenção nos sapatos de Camila. Manhã de sexta-feira,
meio-dia em ponto, pela janela aquele céu semi-azul de Sampa e uma enorme rosa
cor-de-rosa brotada ontem. Tenho que sair, pagar a conta telefônica, ir ao correio,
depois me vuelvo para trabalhar. Sei que Paulo Renato está no Rio, só não sei como
achá-lo, e fico à espera que ele me ache. Lamentei não ter visto Rosinha Marcovici,
mas adorei cruzar Clarissa (como ela é linda, tchê: é uma petite Gretá Garbô, não?).
Beije Guto por mim, e diga a ele para ter cuidado com AIDS e overdose — são
meus maiores meeeeeeeedos (esse tipo de medo — gravíssimo — você só
consegue tapando o nariz com o polegar-e-o-indicador). Graça, la Medeiros, diz
que vai até aí em setembro. Me espanto com a facilidade com que as pessoas
conseguem dólare$. Não tenho, definitivamente, a menor capacidade para tal coisa.
Mas me dá notícias, cuide-se bem. Beijo grande & mucho cariño do
Caio F.
(the Christiane’s brother)

PS — Toque bem alto e forte seu instrumento.

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