A Luciano Alabarse

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Sampa, 09 de julho de 1984

Luciano, querido irmão,
são 23h30m, lua quase cheia, rapazes jogando futebol na rua — eu tentando
te escrever esta carta desde as três da tarde. Veio gente: Vera Karan está dormindo
aqui (manda beijo), Sérgio Bianchi [...] não quer voltar pra casa há dois dias. Eu,
tentando trabalhar, telefone tocando. Mergulhei numa.., crítica teatral. A Marta
Góes não quer mais fazer teatro na istoÉ e eu aceitei dar umas peruadas — só de
vez em quando e coisa que estiver a fim. Aguarde.
Tua carta me preocupou. Estás triste e não me venhas com essa de separação
do Ernesto. Numa boa que eu não acredito. Prepare- se: vou falar Coisas Duras.
Na minha sincera, desinteressada e afetuosa opinião de quem quer te ver feliz: tua
relação com o Ernesto não existe da maneira como você pensa. Eu me atrevo a
achar. Luciano, desguia, entra noutra, arruma um namorado novo, gatinho sem
problemas, que dê cama & carinho. E simples e gostoso. Por que não? Não se
puna. Não finja que-os-problemas-foram-superados-e-tudo-está-num-ótimo-astral.
Chama uma Ro-Ro, vira a mesa de vez e parte pra outra. Você, como qualquer ser
humano, precisa de amor — e como ser humano legal e especialíssimo, merece
amor de uma pessoa bonita. Não de uma pessoa TRANCADA como é o Ernesto
(o que não me impede de gostar muito dele). Você tem que ser mais Escorpião e
cortar fora a parte ferida. Chega de meias-solas e paliativos. Na minha opinião,
você precisa de UMA BOA CAMA (ou várias) [...]. Toma um porre, fuma um
baseado, mas por favor — desguia. Daqui faço força e peço desculpa pelo
atrevimento do toque.
Quanto a mim, aconteceram — oh! — algumas tragédias do coração. O.
veio de Londrina, ficou na casa de uma tia e chegou com um papo que-nossarelação-
tinha-feito-mal-a-ele-e-queria-que-ficássemos-apenas-bons-amigos. Eu disse
que nem-pensar-amigos-tenho-ótimos-e-você-eu-quero-na-minha-cama-e-nos-braços.
Diálogo ridículo, ele dizendo que eu era um-mito-para-ele, e eu dizendo que os
mitos-também-trepam. Tudo isso em pleno Rádio Clube, no meio de um show de
Angela Ro-Ro. Nada mais perfeito. Tomei um porre de vinho, Lucy teve que me
trazer em casa. Chorei a noite toda, dei vários telefonemas desesperados, Fernanda
Abujamra veio me dar colo, à noite saí com o Ruy e fui ao teatro & jantar.
Sobrevivi. Hoje é segunda-feira (foi sexta, o modelão) e só me puteio por te me
enganado OUTRA VEZ. Mas gosto de perceber que as dores são cada vez mais
rapidamente superadas.
Acabo sempre no velho Oswald: “o amor, ah o amor, o quero porque quero
da vida.” E quero, como quero. Vai pintar. Não sossego, embora saiba que
Esperando Godot perde para essa ansiedade impossível da Condição Humana
insaciável com Maiúsculas. Haja. No mais, uma batalha fudida de grana. Tipo
batalhar cinco paus pra pegar um ônibus. Regina, a Duarte, aceitou duas histórias
minhas (uma chama-se Pronto-Socorro Sexual, sobre prostituição masculina; outra,
sobre um poeta suicida, Fragmentos do coração). Está rolando, mas rola devagar, e só
pagam quando aprovado, etc. & etc. Peguei mais revisões insanas para a Brasiliense
e passo o dia trabalhando, trabalhando, na cozinha, na máquina, no tanque. Casa
limpinha, mãos em pedaços e cama vazia (desencostou a Pomba Gira, graças a
Deus!). Um olho meio temeroso em relação ao futuro, o jantar de amanhã, a conta
telefônica. Bem difícil. Mas vamos indo. A grana da SBAT daí não chegou aqui, daí
me deram um adiantamento de 100 mil que me salvou a pele por uns dias. Let it be.
Deus dará, Deus dará.
Sexta recebi uma carta inenarrável do I. Me deu até impulso de responder apenas
com estas palavras: ME POUPE. [...] Saudável perceber que superei total — mais
até: que não tenho o mínimo respeito intelectual por ele. Mas tristinho parar e
pensar: ah, então foi pra ele que eu dei meu coração e tanto sofri? Amor é falta de
QI, tenho cada vez mais certeza.
By phone, Lya me dá boas notícias sobre Reunião, inclusive crítica linda de
Antonio Hohlfeldt [À margem: send me a xerox, please] — eu por aqui ainda não
consegui encaminhar cópia a ninguém (a Lya cobra, cobra, cobra.., haja). Tô
trabalhando demais e morto de vontade de escrever minhas próprias histórias e
sem tempo nenhum. Fui ver Memórias do cárcere e La nave va, adorei. Sinto falta de
abraço e beijo na boca e mão na mão de namorado. Choro às vezes e durmo
pesado. São Paulo é droga pesada. Sergião, o Bianchi, tristíssimo com a morte de
um amigo-irmão, de AIDS, em New York. Nuvens negras. Insistimos.
Sobrevivemos.
A casa tá limpinha, o incenso queima, a roseira tá — medo — sem nenhuma
rosa no momento, quarta vou jantar com Maria Adelaide Amaral e quinta ver Bailei
na curva (o Julio Conte ligou hoje). Fica feliz. Vou fazer feitiço branco procê
arrumar namorado lindo. [...] Você é maravilhoso demais, menino. Se convence,
tchê. Me queira bem sempre. Sinto saudades fortes. Faz pensamento bom pra
minha cabeça e meu corpo resistirem impávidos & legais, preu achar um moço que
diga que sou bonito e não vive sem mim. Te beijo. Te cuida bem. Axé, vários axés.
Carinho sempre do teu
Caio F.
(atualmente em fase pouco F.)

PS — Beijo na Gorda.

Sampa, 11 de julho de 1984.

Luciano,
segunda parte — não tive tempo de ir ao correio, críticas, resenhas, roteiros,
reuniões: batalhas e, nesse ínterim (acho que é a primeira vez que uso essa
palavrinha, não é ótima?) recebi uma carta da Lya. Ela pede [...] que eu converse
com você sobre a possível adaptação da Asa esquerda, que você-quer-montar-e-elasó-
permite-se-eu-adaptar-&-etc.
Bueno, muitas coisas, nada definitivo.
Minha primeira pergunta é: você está REALMENTE a fim de fazer esse
trabalho? Ou só falou en passant e a Lya imediatamente entrou numa? Na segunda
hipótese, esquece, deixa pra lá; na primeira — pergunto eu: você já pensou bem?
Você tá a fim de mergulhar tão completa e longamente no universo luftiano? Não
seria uma insistência numa coisa que você já foi ao fundo, com Reunião? Para o teu
trabalho, não seria melhor partir para outra coisa comple-ta-men-te diferente?
Pensa nisso.
Quanto a mim: não me sinto atraído pela idéia. Primeiro porque acho que A
asa daria um filme, não uma peça. Segundo porque não me sinto muito a fim de
ficar de adaptador oficial nem de Lya nem de ninguém. Terceiro porque meu
tempo é escassíssimo, e vai ficar cada vez mais. Mas é coisa de se conversar e ver.
Mas não acho que esse trabalho pudesse me enriquecer como enriqueceu o
Reunião — a não ser que fosse uma adaptação cinematográfica.
Está acontecendo que estou ficando meio aflito por não ter tempo para o
meu próprio texto. Ando morto de vontade de escrever, e não encontro jeito. Me
comprometi (guarde segredo) com Suzana Saldanha para escrever um espetáculo
(ou reescrever algumas coisas que eu e Luiz Arthur fizemos tempos atrás); a
Brasiliense me cobra o Rimbaud para outubro — e este é uma coisa que eu QUERO muito fazer; tem todo o trabalho da IstoÉ; Manoel Carlos e Regina
Duarte, numa reunião exaustiva, ontem, decidiram fazer uma das minhas histórias
— o Pronto-Socorro Sexual —, tenho que fazer o roteiro final, para passar à outra, o
Fragmentos; Mário Prata me pede o roteiro cinematográfico de Besame mucho; Sérgio
Bianchi quer outro roteiro original e diálogos para um roteiro já pronto (Romance).
Estou cansado, cansado, cansado. Tomando ginseng, catuaba, guaraná.
As coisas aceleraram muito. Não consegui trabalhar naquela peça nova que
te falei: não há tempo. A Brasiliense me entupiu de copydesks mal pagos, que tenho
que fazer porque preciso. Então, a questão é: como encaixaria A asa no meio disso
tudo? Principalmente se não é um trabalho que me excita a cabeça? Tentando ver a
coisa não só do meu ponto de vista, acho que não acrescentaria nada também ao
teu próprio trabalho.
Agora parei um pouco e pensei que tudo pode ser um apressamento da Lya,
e que portanto estou também me apressando. Mas previamente, é isso.
Vou conseguir um tempinho hoje à tarde para ver Fanny e Alexander. Me
pagaram ontem na Art-Vídeo, acho que vou ao Rio.
Preciso de um colo que ninguém dá. Mas tudo bem.
Beijos, carinho. Me escreve ou liga.
Caio F.

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