A Maria Adelaide Amaral

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Saint-Nazaire, 29 de dezembro de 92.

Levíssima, chérie,
mesmo com alguma pressa, não quero deixar o final do ano passar sans une
petit mot pour toi. Terminei minha temporada aqui, e terminei — ufa! — com o
coração cheio de alegria. Consegui escrever o texto para a Maison, é uma novelinha
chamada O leopardo dos mares (com subtítulo, em francês, de Journal d’une ville
sínistrée). Curtinha, umas 6 mil palavras, sai em edição bilíngüe em junho. Fiz
dezenas de amigos, fui OBRIGADO a falar francês 24 horas por dia (inclusive
dormindo, juro!) e o resultado é que je tombée completement amoureux de la
France. Compreendo agora perfeitamente aquele velho clichê “berceau de la
civilisation.”
Poucas vezes na vida me senti tão bem, você acredita? Eu que, no Brasil,
desde que voltei da outra viagem, em junho de 91, me sentia a última das cadelas...
Parto dia 2 ou 3 para Amsterdam, meu amigo Sappe Grootendorst vem me
buscar de carro — ele traduziu contos meus para o holandês, arrumou umas
leituras & tal e, como Dulce Veiga deve sair lá no próximo ano, vou vender meu
peixe...
Provavelmente, fico lá até fim de janeiro, e volto para Paris. Consegui um studio
baratíssimo na região do Séme (ali perto da Sorbonne, a dois minutos de Saint-
Germain) e fico lá vendo no que dá. Tenho pouquíssimo dinheiro e um visto de
permanência até 7 de março. Reze por mim! Cá entre nós — embora nada saiba do
Brasil, exceto o que leio — quase nada — nos jornais — a idéia de voltar não me agrada muito. Estou superdesempregado aí, e aqui também. Donc, voilá, como
Cordélia Brasil. E o Bivar? Se falar com ele, mando beijos.
Passeei muito aqui, é tudo tão pertinho. Nantes, Chartres, Brest, la Baule (a
Miami francesa, cafonérrima), uma cidade medieval murada a 15 minutos daqui,
Guerande. No Natal, peguei um TGV e fiquei três dias rolando por Paris, acabei
num jantar doido com uma ex-mulher de Vinícius de Moraes, chamada Joséphine
Rinaldi [À margem: grande amiga da Tonia Carrero], e — imagine — Guilherme
Araújo (que conta que todos os baianos, exceto Bethânia, o traíram, está em NY há
dois anos e não quer voltar). Fui ver os cantos gregorianos de Saint-Eustache e
peguei outra daquelas orações pensando em você.
Mas de tudo, tudo, o melhor foi o encontro com Daniela Fischerova, essa
moça dramaturga tcheca do recorte. Astróloga, sábia, 44 anos, me deu as varinhas
para jogar o I Ching e me ensinou tanta coisa. Me enlouqueceu falando de Praga —
quando voltar, em junho, vou visitá-la lá. Se não ficar direto aqui. Daniela tem uma
peça — Fabule — traduzida para o francês, que vou levar para você ler. Eu acho
magnífica.
E foi assim, de frente para este porto inacreditável, todos os dias pensando
em fugir, em não suportar as ondas de coisas novas, e amizade, e às vezes também
provas duras — só eu sei — mas com o coração cada vez mais largo.
Ganhei uma permanente para os cinemas aqui, e vi dezenas de coisas —
quase tudo filme francês (todos os estrangeiros são dublados, o que — no caso do
Maris et femmes do Woody Allen é uma catástrofe): fique atenta a Fatale, de Louis
Malle, com Jeremy Irons e Juliette Binoche fazendo horrores na cama (de ruborizar
o Marlon Brando e la Schneider naquele Derniére tango), e a Les nuits fauves, de Cyril
Collard — um séropositivo que filmou a própria história, ele mesmo de ator — é o
Cazuza do cinema francês.
Queria tanto saber daí, das pessoas, de tudo — mas não dá nem para pedir
que você escreva. Vou ficar sem endereço um mês, a não ser que numa prova
suprema & titânica de amizade queira mandar algo aos cuidados da Ray-Güde
Mertin [. . .] vou passar lá no finzinho de janeiro. Hoje estou torcendo pela queda
final da besta Collor e — pour quoi pas? — pela entrada do nosso país num tempo
de astral melhor.
Mando votos de um 93 maravilhoso a quem perguntar por mim, e
especialmente para Murilo, Rodrigo, Guilherme, Bel, Celso Cury.
E para a mais leve de todas as levinhas neste mundo nem sempre tão leve
assim.
Je t’embrasse,
Todo carinho do velho
Love
Love
Love
Caio F

PS — Durante uma semana hospedei uma mãe-de-santo baiana — Sandra de Iansã
— que também é antropóloga, tinha vindo dar palestras em Portugal e acabou —
imagine — jogando búzios na Bretagne!
PS 2 — Teu livro saiu? Como vai a novela com a Bi-Xena Carmen Verônica?

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