A Maria Adelaide Amaral

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Rio, 21.09.83

Levinha,
parece mentira, mas só hoje, mais de duas semanas chegado aqui, encontro
uma folguinha pra te escrever, quase onze da manhã de um dia cinza & molhado
(não existe cidade pior no Brasil que o Rio de Janeiro sem sol). Estou irritado &
dispersivo, uma quadratura Sol/Urano, que sempre me pega de jeito, mas nada de
grave.
Fiquei espantado com a tua carta. Deus, eu não podia imaginar que você
tinha passado por isso — um seqüestro! Tipo filme B americano, assustador e
ruim. Já passou, já passou — toda vez que repito isso lembro daquele final do Last
picture show, do Bodganovich, a mulher passando a mão na cabeça do rapaz, o vento
soprando, a cidade deserta, ela repetindo “it’s all right now, it’s all right now”. O que
posso te dizer é que também não entendo. E que estou aqui, agora ou seqüência
[sic], quando você precisar.
Minha vida tá em compasso de espera: espera do livro novo, saindo dentro
de um mês, no máximo — deve ser mais ou menos o que você sente antes de uma
estréia. Penso sempre que as strip-teasers devem sentir algo semelhante antes de
arrancar a primeira peça. Meu medo ficou mais forte agora e corri a colocar O
grande circo místico, sempre me acalma. Qualquer forma, minha parte já está feita.
Levinha, é o melhor deles. Custou tanto, foi tão difícil escreve-lo. Houve uma
época, na altura do Carnaval, em que fiquei tão tomado por uma personagem
(Pérsio) que tomei três caixas de barbitúricos de Jacqueline. Dormi três dias, e não
me lembro sequer de tê-las tomado. Eu fazia o possível para não escrever, aí
começava e não conseguia parar. Foi um processo louco, ainda estou em recuperação.
Aqui tá esquisito. Na verdade, não gosto do Rio. Este canto é bom: pela
janela aberta, agora, vejo a poucos metros uma mangueira enorme, carregadinha,
depois um pequeno abismo e um mar de telhados, uma selvinha cheia de
bananeiras e coqueiros, supertrópico, muito ao fundo a silhueta das montanhas de
Niterói. Pombas, passarinhos, borboletinhas. Samambaias, isso me vitaliza muito.
Ando lendo montes de Astrologia, ontem ainda lia outro livro do Stephen Arroyo
(aquele mesmo que você me trouxe de Portugal), onde ele diz que você se vitaliza
exatamente com o elemento do signo onde está o teu Sol. Para mim é a terra. Super
Scarlet O’Hara.
Mas a cidade, ah a cidade, que miséria. Um favelão. Detestei São Paulo
também nos dias que passei aí. Achei pobre e barulhenta, todas as pessoas que
cruzei só falavam em cocaína. E como falam. Dirigem a mil por esse trânsito
infernal e falam falam falam. Invivível. Aqui em cima do morro fico em retiro
quase absoluto. Quando vou à cidade, volto irritado. Silêncio, ando obcecado por
silêncio. Um silêncio que te permita ouvir o ruído do vento. E o bater do coração.
E se possível isso que chamamos de Deus, existindo devagarinho em cada coisa.
Existe sim.
Aconteceu uma coisa linda: ganhei um sobrinho. É o primeiro, filho da
minha irmã mais nova, Cláudia. Chama-se Rodrigo. Estranho: a noite antes dele
nascer (dia 16 de setembro, sou do dia 12), sonhei que eu dava a ela uma pequena
rosa vermelha. Ela guardava com cuidado num copo com água. Bem, fiz o mapa
dele ontem e é praticamente igual ao meu. Virgem ascendente Escorpião com Lua
em Capricórnio, com Vênus em Leão, no Meio-do-Céu, e vários planetas em Casa
XII. Tem diferenças, claro. Mas é fantasticamente parecido. Assim como se fosse
uma continuação karmática minha? O mapa dele é mais leve: ao invés, por
exemplo, da quadratura Vênus/Marte que eu tenho, ele tem a conjunção. Ao invés
da conjunção Mercúrio/Netuno que eu tenho, ele tem a quadratura.
Ainda não o conheço. Estou à espera de umas granas (as batalhas financeiras,
sempre — não trabalho mais, vivo de biscates culturais, vai dando, reduzi tudo ao
mínimo indispensável, luxo só discos e muito vezenquandamente, livros, sobretudo
Astrologia, caros, porque importados) para ir. Também porque aconteceu outra
coisa que, como Deus, eu pensava que não existia. Imagino que isso que chamamos
de amor. Algo assim. Porque tudo que vivi e senti antes me parece agora bobagem,
brincadeira. Ele chama-se I., é Touro, Ascendente Capricórnio, Lua em Leão. E
ator, também poeta. Tem uns olhos que mudam de cor e um jeito inteiramente
sábio. Quieto, fundo. E leve. Tão difícil estar longe. Primeiros dias, pirei um pouco.
Ele pirou lá, ficamos ambos doentes, à distância. Não pode vir agora, só no fim de
outubro, tem contrato para terminar um espetáculo.
Eu pensava que não existia. A beira dos 35 anos, eu estava certo que não
existia. Ou que, se existia, não era para mim. Meus trânsitos, minhas premonições
anunciavam. Como se eu me preparasse, tão nítido. Tudo que escrevi nos últimos
tempos — o Triângulo das águas inteiro — anunciava. O trecho final de Pela noite, a
última das três novelas do Triângulo (águas porque é uma de Peixes, outra de Câncer,
outra de Escorpião; mar, chuva, rio; Iemanjá, Iansã, Oxum; água: a emoção mais
finda, a paixão — mas nada disso aparece no texto), é inteiramente premonitório.
Vou me iniciando, sem me espantar mais. Bruxíssimo. As vezes perco os
poderes. A ausência de I. me desvitaliza muito. Questão de tempo. Necessário
aprender a paciência. Me passa à cabeça o título do livro de Barry Stevens, um
provérbio zen, uma velhinha que virou terapeuta getaltista espontânea: Não apresse o
rio,ele corre sozinho. Isso
Pena não poder falar melhor contigo após Chiquinha. Eu estava muito
cansado depois de três [dias] de São Paulo, vindo da tranqüilidade do Menino
Deus, em Porto Alegre, ou de dias em Alegrete, no pampa, terra de Mario
Quintana, ou Gramado. Ao mesmo tempo, não era ali, não era daquele jeito. Mas você estava linda. Gostei imensamente do texto, embora o prefira quando fica mais
íntimo — como naquele diálogo de Chiquinha com a filha baixo-astral, quase no
fim. Faria “reparos” (reparo é muito bom, superSábato) aos figurinos (odiei as
botinhas cinza com fecho ecler e os colants de lycra), à jovem Regina e ao Caça &
Pesca, como diria o Vicente Adorno. Mas todo o Chiquinha me deixou foi com
saudade daquela noite em Cingapura, cadê? E Tessy Marinho? Continuo achando
que Yara Amaral faria magnificamente.
Quase meio-dia. Preciso trabalhar, tenho que entregar até o dia 30 o roteiro
para cinema (um longa 35 mm) de Aqueles dois, conto dos Morangos — contrato
assinado e tudo. Hoje à noite vou assistir a um ensaio de Morangos mofados, eles
adaptaram alguns textos, estréia em outubro ou começo de novembro, no Cacilda
Becker: as tuas Fotografias são das melhores coisas, vou ajudar na trilha sonora,
pensamos numa trilha de boleros para Gladys.
Me escreve assim que puderes. Dê um abraço no Murilo e nos guris. Fica
bem, fica em paz. Te quero um bem enorme. Gal começa a cantar Lily Braun ao
fundo, acabo sempre rindo e dançando um pouco. Muito carinho. Um beijo grande
do seu velho
Caio F.
(o primo careta de Christiane)

PS - Você já deu uma conferida na série Canopus em Argos: arquivos, de Doris
Lessing? Tá tudo lá.

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