A Maria Adelaide Amaral

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Saint—Nazaire!

Levíssima, minha flor luso-tropical,
encontrei na catedral de Nantes — das mais belas que já vi, do século XIV
— esta oração que me lembrou imediatamente você. Aí vai, com carinho. Quando
a rezar, peça também por mim, que vim dar com os costados na Bretagne. Fiquei
10 dias em Paris (trés decadent, cheia de bêbados, imigrados, refugiados) e vim para
cá. Tenho uma bolsa até 31 de dezembro nesta “Maison des Écrivains Étrangers”.
Me deram um ap. enorme, com três quartos, vista para o mar, todo montado (com
uma “mulher a dias” — a faxineira portuguesa— duas vezes por semana) e várias
mordomias. Teatros, cinemas, táxis, tudo de graça. Minha única obrigação é,
quando sair, deixar um texto que será publicado pela Arcane XVII, a editora da
Maison.
Por aqui já passaram Ricardo Piglia, que deixou um texto lindo, Goytisolo,
Reinaldo Arenas (ficou três dias — tinha medo de jogar-se pela janela, um 10ª
andar — e acabou mesmo fazendo isso, seis meses depois em New York), mais
dinamarqueses, africanos, para nós desconhecidos. Atualmente, a outra bolsista é
uma dramaturga tcheca, de Praga, encantadora, chamada Daniella — sobrenome
incompreensível. E astróloga e membro de uma sociedade chamada “Amigos de
Kafka”. Semana que vem chegam três escritores do Báltico — Lituânia, Estônia e
Letônia — de nomes impronunciáveis.
Enfim, estou sendo muitíssimo bem tratado. Os vinhos rouge são os
melhores do mundo, é a região de Bordeaux, e — Murilo me conhece — tenho
tentado não abusar de todos aqueles armagnacs e calvados e remy-martins que um
dia acabarão comigo...
É lindo e perturbador.
Por trás de tudo, claro, há aquela delicada hipocrisia primeiro-mundista,
querendo dar uma forcinha aos pobres-artistas-latino-americanos-meio-mortos-defome.
Latino-americanos só, não: as nordestinas da Europa agora são do Leste.
Passei por algumas saias justas, perguntando num jantar com o prefeito por que —
se os franceses são tão solidários com o sofrimento humano — ninguém faz
absolutamente nada para ajudar a Iugoslávia, que fica a 500 quilômetros daqui. E
ontem Israel proibiu a entrada no país de portadores do HIV. Há um horror
pairando no ar no planeta todo.
Conflitos sociais à parte, acho que estou até feliz.
Daqui vou para Amsterdam, para leituras e palestras, em janeiro. Em
fevereiro volto ao Brasil, e em junho tenho que estar na Alemanha para a Interlit, o
Congresso Internacional de Escritores do III Mundo. Tudo muito internacional, e
tenho sempre medo, e o meu coração é sempre e cada vez mais jeca, graças a Deus.
Tenho rezado muito.
E comecei a tentar escrever quelque chose que ainda não sei bem o que é.
Seja o que for, gira em torno desta frase de Camille Claudel numa carta a Rodin,
que me obceca há anos:
“Il y a toujours
quelque chose d’absente
qui me tourmente.”
Mas te escrevo também para exigir o seguinte:
A senhora vai mandar exemplares de Luiza e Aos meus amigos a estas duas
pessoas: [À margem: importante!] Claire Cayron [e] Annie Morvan.
Claire é a minha tradutora aqui, traduziu os contos de Dragons e Dulce Veigá
(!); Annie é a editora da parte latino-americana da Seuil (a segunda da França,
depois da Gallimard), morou no Uruguai, foi amiga de Nara Leão. Claire foi amiga
íntima de Simone de Beauvoir, tem mais de 500 cartas, inéditas. Ambas adoram o
Brasil, falei de você, muito, e tenho a intuição de que pode dar certo. Mande mesmo.
Conselho de amigo: não peça às editoras (são pão-duras, especialmente a Siciliano,
não mandam nada), mande você mesma. É um pouco caro, but... Vale a pena.
Não sei absolutamente nada do Brasil neste tempo. Amaria receber notícias.
Se alguém perguntar por mim, dê as melhores — serão verdadeiras, apesar de,
como estrangeiro, estar sempre meio bleeding.
Te beijo com carinho.
Abraços em Murilo, Guilherme e Rodrigo. Espero que sua mãe esteja bem
de saúde.
Me perdoe a distância, no Brasil. Acho que sou melhor por carta, e em São
Paulo passei o último ano às voltas com mil problemas — dinheiro, amigos e pais
doentes, aulas — enfiado em casa.
Dê notícias minhas a Pedro Paulo, escrevo logo a ele. E a Bel aussi. Kisses
Caio F.

PS — O que mais sinto falta é de Deus nos acuda! Todo mundo comenta até hoje
as cenas de abertura, que passaram na TV francesa na época do impeachment.
PS — Mande o novo livro pra mim também. Quero vê-lo impresso — e darei
uma opinião melhor — provas são massacrantes.

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