A Jacqueline Cantore

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Porto, 1° de novembro de 1983.

M’r’len,
ótimo receber tua(s) carta(s) hoje de manhã. Não sei se tenho muito o que
dizer, também estou ainda em estado de choque. A gente não podia imaginar que
Ana realmente conseguisse. Ou podia? Primeiro chorei e senti medo e pena. Deu
vontade de deitar, dormir três meses. Aí reagi, tomei banho, fiz a barba, botei uma
roupa bem limpinha e fui assistir ao último dia do Leiteiro. Que foi lindo. A casa
cheia e a platéia aplaudindo em pé no final. Clélia (que melhorou incrivelmente)
empacou no final e repetia, com cara de louca: “Eles vêm nos matar porque nós
sobrevivemos ao fim do mundo.” O tempo todo eu sentia que, se tivesse algo a
dizer (ainda) para Ana C., estava tudo naquele texto. Uma choradeira coletiva nos
camarins depois.
E então sair com I. — tão lindo, mais lindo ainda —, tomar um vinho,
depois vir dormir. E não conseguir: na minha cabeça, Ana C. parada à beira de uma
janela. Pensamentos mórbidos: o que ela teria sentido um segundo antes de se jogar
no espaço. Depois do choque, certa raiva. Com que direito, Deus, com que direito
ela fez isso? Logo ela, que tinha uma arma para sobreviver — a literatura —, coisa
que pouca gente tem. Pedi a Deus que não permitisse que ela ficasse muito tempo
no limbo onde ficam os suicidas. Terá ouvido? Deus não andará com aquela surdez
provocada pela poluição sonora?
Tudo muito horrível. Uma entrevista com Maria da Conceição Tavares na
IstoÉ mais uma matéria no Jornal Nacional sobre os efeitos de uma possível (e
provável) guerra nuclear (uma espessa capa de fuligem cobriria o planeta, ficaria
noite durante muitos anos — Leiteiro perde) me deixaram mais apavorado.
Ai olho para I. ou fico horas com Rodrigo no colo — e a vida existe e também é
bonita. E se renova. Tem lados de luz.
Rodrigo: me pareceu extremamente familiar, Odeia barulho, muita gente —
é eu superquietinho. No dia que cheguei, levaram ele no médico e está com um
problema relativamente grave, mas comum em bebês, um hérnia escrotal. Um dos
testículos não desce, coisa assim. Vai precisar fazer cirurgia, mas é rápido. Só que
Cláudia chorou horrores. Nair ficou supernervosa. Eu com meus botões pensava,
não podia dar outra. Ascendente Scorpio e ainda por cima Saturno começando a
fazer a conjunção do Ascendente (que é 11º 20’). Mas tá tudo bem.
S’as que a cidade tá linda. Tem uns ipês roxos roxos roxos derrubando as
flores, então ruas inteiras atapetadas de roxo. Sexta e sábado foram dias lindos,
claríssimos, céu e sol luminosos. Como alegria de efeito estufa dura pouco,
domingo começou a chover torrentes e só tá parando agora.
Gracias pelas duas críticas (?) ao Triângulo. Cá entre nós: achei inteiramente,
mas bota inteiramente nisso, idiotas. A da Bella Josef (o nome é fantastish...) é um
amontoado de adjetivos. A outra nota diz mais ou menos assim porra-todomundo-
diz-que-é-bom-pra-caralho-então-eu-vou-dizer-olha-é-bom-mesmo-mastambém-
não-TANTO-assim. Haja. Fiquei lendo a matéria da Ana C. na Folha. E
dá uma dor. Lembra daquele cara pixando ela acho que no JT, chamando de British
virgin? Agora porque matou-se, ficou perfeita. [À margem: Horrível saber que a
crise dela começou com o abaixo-assinado das famílias na vila da Gávea. Aliás,
Kleiton e Kledir dançaram em Salvador.] Que país, que cabeças. [...] Estou ficando
cada vez mais cruel. E quero DISTÂNCIA. Umas culpas atravessam. Tivesse sido
mais pacientes quem sabe? Horrível confirmação: a décima terceira voz, que eu não
compreendia direito — é que foi escrita praticamente toda para Ana — agora faz
todo sentido do mundo. Fica claríssima.
Ontem, com uma puta chuva, nos tocamos eu e I. para os autógrafos de
Tania Jamardo na Feira. Pasme: ela simplesmente NÃO FOI. No que fez muito
bem, também acho.
Eu por aqui, não sei direito de mim. Pausa, compasso de espera:
a casa, para voltar, quando? Me sinto bem aqui. Tem I. Não dá para explicar.
Alguma coisa em mim alivia, fica inteira, fica calma. Além de lindo, ele é leve, leal, e
está ao lado. Eu tenho certeza absoluta que ele está do lado. Não há esforço. Tudo
bem simples. O Jary também tá ótimo. Gorda faz questão que eu te mande este
jornalzinho de Canoas e diz para prestares atenção na concordância da chamada de
capa para a entrevista dela. Denise Liége em crise. Fiquei observando. Beira às
vezes Ana C. Crise 50% teatral — mas perigosa, de repente você perde o pé e de
tanto fingir que está profundamente infeliz, acaba não sabendo mais separar o
palco da realidade. E aí a gente sabe o que acontece, não?
Adorei o recado da Patricia Dumont — vou escrever para ela. Mas não sei se
mando aos cuidados do Edgar, para a joalheria ou se tento descolar o endereço
daquela amiga com quem ela está morando — me parece que é uma quitinete em
Copacabana ali pela Barata Ribeiro. Se souberes, me informa.
Encontrei Marquinho Franchetti!, que perguntou por ti. Estão ensaiando o
García Márquez e — grande notícia — Lulu Martini volta aos palcos! Estou
marcando aqui enquanto I. foi cortar o cabelo no Scalp, depois nos encontramos
no Cinema São João para ver Superman III, depois temos um convite para jantar
com Graça Numes e Clélia Admar. I. queria saber se precisava usar aquele
Comander número 46. Eu fui da opinião que não: além da redundância, os pés não
caberiam sob a mesa. Mesmo assim, acho prudente ir de botas.
Diz a Cacaia que fique bem calminha. Tá tudo bem, já passou. Fico
preocupado com GM. Mas afinal, se nascemos neste tempo exato, devemos ter
aprontado boas noutra encarnação. E tem o seguinte, meus senhores: não vamos enlouquecer, nem nos matar, nem desistir. Pelo contrario: vamos ficar ótimos e
incomodar bastante ainda. Cuide-se bem, você.
Encontrei na Feira um livro chamado Entrevero de causos — queres que te
mande? Ah: a Faixa Sanitária é um FATO. Fica com Deus, um beijo do
Caio F.

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